Por causa do nosso porreirismo característico, não confrontamos os outros com as realidades mais duras: preferimos deixar as coisas mal paradas a deixar um companheiro mal visto (a não ser que se trate de o deixar mal visto quando ele não está presente). Quando vamos para o governo levamos esta maneira de estar na vida connosco, não só no que diz respeito aos outros como também no que respeita à nossa actuação, e é assim que não nos confrontamos, nós próprios, com a realidade (esse mito); e é assim que as nossas boas intenções na qualidade de governantes (e ideias tão boas no âmbito da nossa cabeça) são sabotadas pela ausência de boas relações com as coisas como elas são, e com o trabalho e a humildade que elas requerem. Poderia começar assim, como começámos, uma interessante reflexão sobre o desfasamento entre o estado da nação e o discurso sobre o estado da nação, por parte do Governo, se por casualidade houvesse desfasamento. Ou se houvesse governo. E a haver, não somos nós, ainda; quando lá chegarmos podemos reflectir sobre o assunto, com calma.
Por agora vamos apenas tratar de reflectir sobre uma coisa completamente diferente: o desfasamento entre aquilo que o Governo diz e aquilo que o Governo diz, pouco tempo depois (porque ele pode não existir, mas, ai, não se cala, ai). E também sobre uma ou outra incongruência entre aquilo que o Governo faz e aquilo que vem a fazer depois. Ora a reflexão já estava feita antecipadamente, para não se estar aqui três quartos de hora à espera que apurasse. Quem quiser pode e deve fazer a sua, e há-de sair igual à nossa: trata-se de uma situação desagradável. Seja como for, em certas áreas não essenciais, são poucos os que verdadeiramente se preocupam, e o Governo pode estar mais ou menos descansado.
Por exemplo, pode o Governo estar descansado na área da Educação depois de ter vindo a respectiva ministra dizer que as escolas vão fechar todas e que será criado um Centro Nacional Educativo (na casa dela, com assistência da dona Armanda para fazer os croquetes para a criançada e os jogos de objectos escondidos pela casa, uma grande aventura), centro esse dotado das mais excelentes condições materiais (80 000 livros Uma aventura) e humanas (a ministra e a dona Armanda) e de, mais tarde, ter dito que afinal não é bem assim? Pode. É um processo, as aventuras da ministra estavam em situação de claro excesso de stocks, etc., etc., tudo bem, escapa.
Provas de ingresso para admissão na carreira docente para todos os professores, depois só para os que tenham classificação inferior a menos mau, ou coisa assim, está-se bem? Está.
A ministra da Cultura começa por avançar com a ideia de cortar nos apoios à actividade cultural, depois pensa melhor e decide deixar estar como estava, isto chateia alguém? Nada, e de qualquer maneira cinquenta euros a mais ou a menos não fazem diferença nenhuma.
Não convém é brincar às grandes obras públicas, que isso é como ofender a religião que se pratica. O TGV não pode passar de milagre anunciado a piada de mau gosto, os aeroportos não podem estar aqui estar ali, o segundo concurso para a terceira travessia sobre o Tejo não pode ser lançado em Julho sem que antes tenha sido anulado o primeiro, de Janeiro. E com as taxas e impostos é o mesmo, o Governo não pode ser tão pouco claro, ao nível do discurso e da acção, seja no que respeita ao período sobre o qual incidirão as novas taxas de IRS seja com a introdução de portagens nas SCUT, para dar dois exemplos em que inclusivamente o Governo, receando não conseguir criar muita confusão sozinho, terá pedido ajuda do PSD.
Aumentar os impostos e fazer obras, muitas obras, e muitos impostos para pagar as muitas obras (e outras manobras): já se sabe que assim também qualquer um de nós poderia ser governo, mas continua a ser o mínimo que se pode esperar. Tudo o que seja pior do que isso – ou, dito de outra maneira, quando até isso é mal feito - começa a ser um pouco desagradável.
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