terça-feira, 15 de junho de 2010

O cheiro a escândalo já anda no ar há demasiado tempo para que a gente não tenha ainda nada de substancial para encher a barriga. Aqui no artelho, sempre que vem tempo de chuva, sinto-o chegar. E depois passa, normalmente. Se a chuva não vem, fica a doer mais e durante mais tempo. É porque era outra coisa, e tanto andei eu a dizer que vinha chuva para nada. Sim, sim, queremos saber se Sócrates, o Bem Vestido, tem alguma nódoa afinal ou não. E aquilo do desculpe, com que interrompe os jornalistas, como quem nos puxa os cabelitos com força atrás, na pele sensível do pescoço antes da nuca, ele também é assim na intimidade? E usa pastilhas para o mau hálito? Mas tem algum defeito afinal, ou aquilo é o quê? Parece que é perfeito, o raio do homem, se não é faz-se.
Mesmo que por pura sorte, por exemplo durante a investigação de outro caso, se escutasse alguma coisa que o incriminasse, e se por sorte pura e sentido do dever, as autoridades que tinham esse caso a seu cargo fizessem denúncia ao Procurador Geral, este, por ventura, engonhasse conjuntamente com o Presidente do Supremo, mas, ainda num delírio que me está a vir, por questões de consciência das prioridades, alguém fizesse chegar por portas travessas alguma dessa coisa escutada aos jornais, e estes por dever de informar a publicassem, e ainda se por responsabilidade democrática viesse a haver uma comissão de inquérito parlamentar para apurar os factos (meu Deus!), e nela vamos supor que se colocava a hipótese de interna e legalmente terem os deputados acesso a algumas dessas escutas, e vamos agora imaginar que só alguns lhes queriam tocar, e que elas acabavam por não ter relevância nem qualquer efeito nos trabalhos comissariados, nem se chegava a conclusão nenhuma sobre a possibilidade de revelar publicamente o despacho que dá conta da possibilidade legal da própria utilização do resumo das escutas privadamente, mas já agora, que por razões de princípio um deputado ameaçava revelar o despacho e a carta que acompanharam o resumo das escutas se não houvesse uma decisão na e pela comissão até sexta feira. Custa muito, mas vamos tenatar imaginar que todo este cenário é real.
Mas agora admita-se que o deputado cumpre a ameaça em voz de vuvuzela de tal modo estridente que todas as sinapses estabelecidas via dinamite cerebral estourariam de vez. E quê? Nada, por supuesto. Nenhuma mancha cairia a tempo em cima do Sócrates. Que espécie de país quer um escândalo com o sentido rítmico de um zombie? Não, não, queremos algo vibrante e espectacular, como no Vaticano.
Mas algum escândalo tem que haver por aqui algures, não escrevi todo este enredo para nada. É que a história pode estar contada de maneira a parecer que é uma coisa e no fim vir a ser o seu contrário. Há filmes assim. Se for isso, está bem. Eu próprio ainda não sei como acaba.
Vamos ver. Como seria esta história ao contrário? No segundo parágrafo, onde agora está ‘Mesmo que por pura sorte…’ passaríamos a ter ‘Mesmo que por pura mesquinhez… ’; e assim por diante, substituindo: ‘sentido do dever’ por ‘agenda política’; ‘consciência das prioridades’ por ‘oportunismo desavergonhado’; ‘dever de informar’ por ‘sensacionalismo’; ‘responsabilidade democrática’ por ‘cinismo politiqueiro’; e ‘razões de princípio’ por ‘schadenfreude’. Seria aparentemente caso para grande escandaleira (também), mas assim em pára-arranca continua a estar para um verdadeiro escândalo como a burocracia na justiça está para a paixão amorosa. Não há emoção, não há lágrimas nem suor. Nem sangue.
Há então, ao que parece (ainda acredito em mal-entendidos (nos filmes)), duas possibilidades: ou o Sócrates cheira mal da boca, e é um escândalo; ou a sociedade portuguesa está tão infecta que umas quantas pessoas desprezíveis, de vários sectores, conseguem com toda a facilidade e impunidade montar um esquema mal cheiroso. E é um escândalo. Ou então há um pouco das duas coisas, e então já são três possibilidades. E é um escândalo.
Agora decidam-se, o que eu sei é que preciso rapidamente de algo escandaloso, que tenho os níveis de enxofre no sangue muito em baixo, dói-me o artelho e não sei como acabar este filme.

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